quinta-feira, 6 de julho de 2017

O Fim do Império (I): os 4 + 1 acordos de descolonização.

 
 
 
 
 
 
O Fim do Império (I): os 4 + 1 acordos de descolonização
 
1.     Celebração dos acordos (lado português)
Com o objectivo de atribuir ao Presidente da República a condução dos processos de descolonização e fazê-lo repartir as responsabilidades com os demais órgãos constitucionais, a Lei n.º 7/74, de 27 de Julho (Lei da Descolonização), veio estabelecer um regime especial. Assim, enquanto no regime geral da Lei n.º 3/74, de 14 de Maio (que  definira a estrutura constitucional provisória) competia ao Presidente da República ajustar tratados internacionais, directamente ou por intermédio de representantes, e ratificá-los depois de devidamente aprovados pelo Governo Provisório (artigos 7.º, n.º 9, e 16.º, n.º 1), agora o artigo 3.º da Lei da Descolonização (acrescentado pela sua 3.ª versão[1]) determinava que cabia ao Presidente da República, ouvidos a Junta de Salvação Nacional (JSN), o Conselho de Estado e o Governo Provisório, praticar os actos e concluir os acordos relativos ao exercício do direito à autodeterminação reconhecido nos seus artigos 1.º e 2.º.
Portanto, a direcção de todo este processo coube sempre e em última instância ao Presidente da República (primeiro, o general Spínola quanto às independências da Guiné-Bissau e de Moçambique, e, após a renúncia deste em 30 de Setembro de 1974, o general Costa Gomes, quanto às independências de S. Tomé e Príncipe, Angola e Cabo Verde). Mas a celebração dos acordos de descolonização ficou sujeita a um processo próprio, em três fases: negociação, aceitação (homologação) e aprovação.
A negociação coube a diferentes delegações “ad hoc” (embora, no texto dos Acordos, sejam genericamente designadas como “delegações do governo português” ou “delegações do Estado português”), sucessivamente escolhidas pelo Presidente da República. Nem o Governo Provisório (apesar do relevante papel desempenhado pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros, da Coordenação Interterritorial e Sem Pasta, respectivamente, Mário Soares, Almeida Santos e Melo Antunes) nem a diplomacia tiveram qualquer intervenção significativa nesta fase. A negociação concluía-se pela assinatura do protocolo, a cargo da delegação (após autorização do Presidente da República), marcando a data e o local do acordo.
Segundo a Lei da Descolonização, a fase seguinte, de homologação, impunha a audição da JSN, do Conselho de Estado e do Governo Provisório mas os protocolos só foram especificamente objecto de reuniões do Conselho de Estado (embora o texto dos acordos refira também a audição dos demais órgãos). A aprovação (fase final) de cada acordo era da competência exclusiva do Presidente da República – que ainda dava expressamente ordem de publicação em Diário do Governo.
 Juridicamente, à primeira vista, estaremos perante “tratados não solenes”, na forma específica dos generalizados “acordos em forma simplificada”, bilaterais – porque, em todos os casos, celebrados entre dois distintos sujeitos de direito internacional: de um lado, o Estado português; de outro, os movimentos de libertação de cada território em causa.
 
2.     Relação dos acordos
O primeiro foi o Acordo de Argel, de 26 de Agosto de 1974, com o PAIGC. Essencialmente, limitou-se a prever o reconhecimento de jure da República da Guiné-Bissau (marcado para 10 de Setembro de 1974) e, ainda, do direito à autodeterminação e independência do povo de Cabo Verde (a regular posteriormente). Em minha opinião, serviu como chave e definiu o modelo de toda a descolonização portuguesa[2]. 
Logo de seguida, o Acordo de Lusaca, de 7 de Setembro, regulou a  descolonização de Moçambique, consagrando os seguintes quatro princípios: cessar-fogo de jure, reconhecimento do direito do povo moçambicano à independência, período transitório de transferência de poderes e declaração de independência pela FRELIMO (a 25 de Junho de 1975).
Depois, o Acordo de Argel, de 26 de Novembro, com o Movimento de Libertação de S. Tomé e Príncipe (MLSTP) também assentou em quatro princípios próprios: reconhecimento do direito à autodeterminação e independência, reconhecimento do MLSTP como “interlocutor e representante legítimo”, período de transição e declaração de independência (a 12 de Julho de 1975) por uma assembleia eleita.
O Acordo de Alvor, de 15 de Janeiro de 1975, para Angola, era o mais complexo. Baseava-se em seis princípios: (i) cessar-fogo; (ii) reconhecimento do direito à independência do povo angolano; (iii) reconhecimento da FNLA, MPLA e UNITA como “únicos e legítimos representantes do povo angolano”; (iv) período de transição durante o qual o Estado português transferiria progressivamente todos os poderes para os órgãos de soberania angolana; (v) eleição de uma assembleia constituinte; e (vi) proclamação da independência, em território angolano, pelo Presidente da República Portuguesa ou seu representante expressamente designado. Apresentavam-se, portanto, duas características peculiares: reconhecimento de três movimentos de libertação e proclamação (“concessão”) de independência por Portugal. Porém, perante a paralisação do Colégio Presidencial, do Governo de Transição e da Comissão Nacional de Defesa e, sobretudo, como consequência da situação de guerra civil que sobreveio, o Decreto-Lei n.º 458-A/75, de 22 de Agosto, suspendeu (transitória e parcialmente) o Acordo do Alvor quanto aos órgãos de governo de Angola. Mantiveram-se vigentes as várias normas dos capítulos I e II relativos à independência e ao Alto-Comissário (cujos poderes até ficaram reforçados). E, na data prevista, a 11 de Novembro de 1975, a independência de Angola foi solenemente declarada pelo Alto-Comissário mas a soberania plena apenas foi “entregue” ao povo angolano (com referência à nação angolana e ao território de Angola). Esta solução especial adoptada por Portugal – objecto de parecer de especialistas de direito constitucional e internacional, e como opção das reuniões em que intervieram o Presidente da República, o Conselho de Ministros, o Conselho da Revolução e os secretários-gerais do PS, do PPD e do PCP – resultou do conclusivo entendimento de ser devido Portugal reconhecer o novo Estado e ser possível fazê-lo sem simultâneo e imediato reconhecimento do governo (por este não estar formado nos termos determinados pelo Acordo de Alvor)[3]. Por sua vez, à mesma hora, meia-noite de 10 para 11 de Novembro, os movimentos de libertação (o MPLA em Luanda, a UNITA no Huambo e a FNLA no Ambriz) «procederam a uma pressurosa e algo embaraçosa proclamação da independência de um país partido em três»[4]. Portugal não reconheceu qualquer dos governos; as declarações unilaterais da FNLA e da UNITA não obtiveram êxito; o Governo de Luanda, promovido pelo MPLA, obteve sucessivos reconhecimentos (de Estado e de Governo) mas só após alguns anos alcançou reconhecimento universal[5]. Por sua vez, Portugal completou a sua concessão de independência, reconhecendo o Governo da República Popular de Angola em 23 de Fevereiro de 1976 (foi o 82.º Estado a fazê-lo)[6].  
À primeira vista, o estatuto de Cabo Verde foi juridicamente diferente de todos os anteriores pois, além de o Estado português não ter reconhecido de jure qualquer movimento de libertação como representante “autêntico e exclusivo” do povo cabo-verdiano, não foi formalmente publicado um (específico) acordo de descolonização, sim apenas um (mero) Protocolo, por sua vez, desenvolvido através de uma lei interna portuguesa. Apesar disso, não é de considerar o caso cabo-verdiano como excepção ao quadro dos acordos de descolonização, por três razões conjugadas: (i) o citado Acordo de Argel, de 26 de Agosto, celebrado com o PAIGC, contém compromissos e princípios gerais sobre a descolonização de Cabo Verde (embora delineie para esta um processo diferente da descolonização da Guiné-Bissau); (ii) o PAIGC foi de facto reconhecido pelo Estado português como único e legítimo representante do povo de Cabo Verde; e (iii) o Governo português definiu com o PAIGC, através de um Protocolo (espécie de “acordo internacional”), assinado em Lisboa a 19 de Dezembro de 1974, os termos e as condições dessa independência e, ainda, regulou o (transitório) Estatuto Orgânico de Cabo Verde através da Lei n.º 13/74, de 17 de Dezembro[7]. Ora, o referido Protocolo continha o compromisso político que justificara a aprovação deste Estatuto Orgânico de Cabo Verde (conforme reconhece o artigo 3.º do Protocolo) e enunciava os seus princípios gerais. Muito embora do Estatuto não conste qualquer referência expressa ao PAIGC, já o Protocolo continha uma série de declarações políticas do Governo português e do PAIGC quer quanto à sequência do processo de independência, quer de salvaguarda dos mútuos interesses dos povos de Portugal e Cabo Verde, quer quanto às futuras relações entre ambos os Estados. Aconteceu porém que tal Protocolo – cuja validade formal dependia da aprovação pelo Presidente da República portuguesa e pelo secretário-geral do PAIGC (cfr. artigo 19.º) – embora assinado por representantes de ambas partes, não foi objecto de publicação oficial[8]. Assim, apesar destas incidências e especificidades procedimentais e tal como também defendeu recentemente um constitucionalista cabo-verdiano, deve entender-se que o conjunto deste «mesmo processo político especial» se pode e deve globalmente designar “Acordo de Independência” da República de Cabo Verde[9].
Em suma: a descolonização das cinco colónias africanas portuguesas realizou-se por via de acordos internacionais. Os cinco (melhor: quatro mais um) acordos de descolonização, apesar das suas especificidades e diversas vicissitudes, obedeceram a um só modelo: reconhecimento e transição para a independência total e imediata, celebração directa, bilateral e exclusiva com os movimentos de libertação nacional dos respectivos territórios (três na caso angolano e um abrangendo simultaneamente a Guiné-Bissau e Cabo Verde). 
 
 
(conclui no próximo “post”)
António Duarte Silva


[2] Ver A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, Porto, Edições Afrontamento, 1997, pp. 261 e segs., e “Guiné-Bissau: libertação total e reconhecimentos portugueses”, in Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira (org.), O Adeus ao Império – 40 Anos de Descolonização Portuguesa, Lisboa, Lisboa, Nova Vega, 2015, pp. 122/124.
 
[3] Cfr. Pedro Pezarat Correia, Descolonização de Angola – A jóia da coroa do império português, Lisboa, Editorial Inquérito, 1991, nomeadamente pp. 170/175. Muito resumidamente, a posição portuguesa também é apresentada por Fernando Tavares Pimenta, “O processo de descolonização de Angola”, in Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira (org.), O Adeus ao Império – 40 Anos de Descolonização Portuguesa, cit., pp. 173/174, e Alexandra Marques, Segredos da Descolonização de Angola, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2013, p. 477.
[4] Onofre dos Santos, Os (meus) dias da Independência Lisboa, Editorial Notícias, Lisboa, 2002, p. 11.
[5] Entre outros, Marcolino Moco, Angola – estado-nação ou estado-etnia-política?, Luanda/Lisboa, Edição do Autor, 2015, pp. 78 e 97, sustenta que a independência de Angola resultou de  declaração unilateral, promovida pelo MPLA. A afirmação não é correcta, pois a independência de Angola fundou-se no artigo 4.º do Acordo do Alvor, que se manteve vigente e foi cumprido.
[6] O documento histórico mais importante é a “Súmula da reunião extraordinária do Conselho de Ministros (22 de Fevereiro de 1976) tal como elaborada pelo respectivo Secretariado Permanente”, publicada apud Costa Gomes Sobre Portugal – Diálogos com Alexandre Manuel, Lisboa, A Regra do Jogo, 1979, pp. 165/175 (embora alguns intervenientes na reunião não distingam rigorosamente o reconhecimento de Estado do reconhecimento do Governo – do MPLA, única questão realmente em causa).  
[7] Sobre a discussão deste Estatuto Orgânico no Conselho de Estado, cfr. Maria José Tíscar Santiago, O 25 de Abril e o Conselho de Estado – A Questão das Actas, Lisboa, Edições Colibri, 2012, pp. 201/203.
[8] Mas está expressamente referido nos considerandos do Acordo Geral de Cooperação e Amizade entre Portugal e Cabo Verde. Segundo Almeida Santos, além da sua autoria da Lei Eleitoral, o Protocolo foi elaborado no decurso de uma reunião que teve com Pedro Pires, e «praticamente fi-lo sozinho, mas ele lá discutia uma palavra ou outra» – cfr. Almeida Santos (entrevista a São José Almeida), “Quem mandou no processo de descolonização foi o MFA”, in Público, de 10/5/2004, p. 14.
[9] Mário Silva, Contributo para a História Político-Constitucional de Cabo Verde – 1974-1992, Coimbra, Almedina, 2015, p. 19.
 
 
 

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